sábado, 25 de fevereiro de 2012

Quatro Palavras

Tenho uma doença que, dez entre dez pessoas morrem de medo. Só de pronunciar o nome estremece dez entre dez colunas vertebrais. O "vilão" que não poupa ricos ou pobres, negros ou brancos, bonitos ou feios, altos ou baixos... Câncer.
Quando descobri a doença tinha quinze anos, e uma rebeldia incontrolável, logo, neguei tratamento. Meus pensamentos estavam tão desnorteados que não viam outra saída além da morte.
Os médicos descobriram cedo e, por acaso, graças a uma tentativa malsucedida de suicídio. Meu estado deplorável requereu uma bateria de exames e, nestes, nada foi revelado. Eu me recuperava psicológica e fisicamente. Nesse ocorrido, lesionei meus braços e, numa troca de curativos, uma atenciosa enfermeira observou uma alteração de tamanho, coloração e forma nas feridas. Então, ela chamou um médico para examinar; este, imediatamente pediu uma biópsia. Minha cabeça estava um caos. Pensei em diversas outras possibilidades de se fazer um exame desses sem que a resposta fosse câncer. Acabei esquecendo de me preocupar com isso, afinal, as razões que me levaram, primeiramente, ao hospital, estavam longe de serem consideradas "uma luta pela vida". Porém, esqueci de pensar que, mais cedo ou mais tarde, o diagnóstico chegaria. E chegou. Estava com melanoma e, ainda que em estágio inicial, era câncer. Meu oncologista disse, anos mais tarde, que quando o câncer foi descoberto, nem poderia ser classificado em estágio II, e eu tive muita sorte então, já que as pessoas normalmente descobrem tarde demais, quando o melanoma já está em estágio IV, pois é aí que ele começa a dar sinais claros no organismo. Minha sorte aqui foi muito irônica.
Um exame meticuloso foi feito em toda minha pele, ossos e tecidos orgânicos. Houve uma anomalia, chamada de calcificação giral. Nada grave, apenas uma bolinha cancerígena entre meu couro cabeludo e meu crânio. Precisava retirar aquilo. "Ah, então tudo se resolveria com uma cirurgia e esse velório ao meu redor teria fim." A cirurgia foi realizada; fiquei careca, mas sem a calcificação. Aliás, anestesia é uma coisa trágica, pois passei alguns dias meio boba e sonolenta e nem dei por falta do meu tão adorado cabelo. Conforme os dias foram passando, aquele gélido quarto foi se tornando meu lar; e eu acreditava que o pior já tinha passado e que o meu cabelo iria crescer. Era o que todos diziam, "cabelo é o de menos, ele cresce".
Mesmo já careca, filosofei até cair os cabelos de quem me ouvia tagarelar. No banheiro do quarto, um pequeno espelho "antissuicída" ficava pendurado em cima da pia. E era lá que eu refletia. Meu rosto era tão oval, horrível! Mas aquela espinha chata, o nariz "batata", todas as imperfeições que antes da cirurgia pareciam grotescas, desapareceram perante a um rosto sem o brilho capilar.
Era numa quinta-feira, quando tive alta. Fiquei feliz, para minha própria surpresa. Meses de depressão colocaram um sorriso gigante em mim. Eu e minha mãe fomos ao mercado; uma menina apontava o dedo para mim, eu gargalhei. Minha mãe me olhava com olhos inchados e inconformados; ela não achava engraçado.
Não se expurga um câncer apenas com cirurgias. Tratamentos pesados dão o ar de sua desgraça e assim, na semana seguinte, ouvi aquelas quatro palavras que ninguém quer ou espera ouvir na vida: "Você precisa de quimioterapia." "Meu mundo caiu? Nem um pouco ou aos poucos." Na primeira e segunda sessão, toda faceira, levei duas coisas: meu IPOD com inclassificáveis do Ney Matogrosso e a versão ao vivo do Back to Black, da louca Amy Winehouse e o livro do James Joyce (Retrato de um Artista enquanto Jovem). Enjoei! As pessoas que já passaram por isso me entenderão. Enjoamos das coisas muito fácil… E não é só da comida. Eu enjoava da clínica, do
cheiro das coisas, das pessoas, de ver o meu xixi no vaso sanitário, e incrivelmente, enjoei do curativinho que colocam onde fica o cateter. Então você cansa e a morte parece menos terrível.
É chocante assimilar todo o processo e aceitá-lo. Vivê-lo é insuportável. "Acho que aceitar um câncer é parecido com os estágios do luto. Você sente raiva, medo, indignação e ódio, e no fim, acaba aceitando. Mas, assim como o câncer, o sentimento nunca é, completamente, expurgado. E repito, no meu caso, foi tudo tão irônico.
A ironia de cometer um ato contra si mesma e, logo em sequência, lutar contra um câncer, é grande. As emoções que senti foram tão contraditórias que eu procurava nem pensar. Eu queria morrer, mas pelos meus motivos e não defasada por uma doença. Em retrospectiva, acho que enfrentei a quimioterapia, as cirurgias, o medo de morrer, o rosto oval, o preconceito alheio, as dores, a insônia, as vertigens, os enjoos, a febre alta e seu frio trêmulo na espinha... para estar aqui hoje, para poder contar esta história, que chamaria de milagrosa, se não fosse ateia. E assim, faço minhas as palavras de José de Alencar, que bradou: "Não temo a morte. Peço a Deus que não me dê um dia a mais de vida se eu não puder me orgulhar desse dia."
Às vezes choro um choro estranho, como nunca chorei antes. Uma mistura de felicidade por poder estar viva e algo como reviver o medo de não poder mais estar bem. Não dá para explicar. A maioria das lágrimas que escorrem pelo rosto são de medo, alegria e agradecimento àquelas quatro palavras, que mudaram minha maneira de ver a vida.

Mona M.



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